NAVEGANDO EM ÁGUA RASA

Por Luiz Gonzaga da Rocha

“Entretanto Repare V.a S.a que se notão em hum fragmento de papel os nomes de quatro R.R. que o forão na Revolução de Minas Geraes, e hoje degradados em Angola, e Monssanbique (sic); e que se empenhão muito os Maçoens em espalhar a seyta no Brazil. (Sabese haver loges opolentas em Pernambuco, e Bahia) Para isto vem muito o interesse que se deprehende nos papeis aprehendidos de clamar a seyta o novo Ouvidor de Cerro Frio que parece a não haver fim sinistro de nada serviria á seyta em Lisboa no tempo e que estiver servindo izolado no Certão do Brazil” (José Anastácio Lopes Cardoso).

Proêmio

Navegando em água rasa e contra a maré dos argumentos de consagrados escritores maçônicos e maçonólogos brasileiros, ando ariscando meu precioso pescoço, desde muito, na defesa quase intransigente da participação da Maçonaria na Inconfidência Mineira.

Há muito senti o cheio de bode nos ventos que sopravam das altaneiras ações dos Inconfidentes. Faro de historiador ou faro de pedreiro-livre? Não sei! Mas, ousei dar voz à voz interior que me dizia: “não desista, a recompensa virá”. Este artigo, cujo mérito é atribuído ao doutor Pablo A. Iglesias Magalhães, Professor Adjunto IV de História do Brasil e Histórica Ibérica no Centro de Humanidades da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), é uma dessas recompensas.

Nunca dei o assunto por encerrado. Em 2015 escrevi um longo artigo, “A Influência do Abade Reynal no Processo de Independência da América e na Inconfidência Mineira”, destacando os livros “Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des européens dans les deux Indes” e “Révolution de l’Amerique”, e o pensamento liberal do Abade Raynal (Guillaume Thomas François Reynal – 1713/1796) na intelectualização da Inconfidência Mineira, Carioca (1794), Baiana (1798) e Pernambucana (1801 e 1817). Nosso artigo foi publicado na Coletânea “Anuário de Pesquisas”, da Loja de Pesquisas Maçônicas do GODF, em 2016, e na “Antologia dos Acadêmicos”, da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul, em 2017.

O interesse em demonstrar o idealismo maçônico na ação dos Inconfidentes figurou em meus escritos sobre o Aleijadinho (Antônio Francisco Lisboa 1738/1814), a partir de 1995. Trechos de um dos nossos escritos figura no livro “O Poder da Maçonaria” (2008), dos historiadores Marco Morel e Françoise Jean de Oliveira Souza. E sempre que aparecia uma janela aberta, estávamos a argumentar sobre as impressões digitais da maçonaria na Inconfidência Mineira.

Lendo os livros de Stephen Hawking (1941/2018), sobre quem escrevo um texto para figurar na coletânea “Os Grandes Pensadores da Humanidade e o Rito Moderno”, compreendi a razão dele afirmar não ser possivel viajar no tempo, mas, quedo-me convencido de que se não podemos ir ao passado, o passado pode, vez por outra, vir ao nosso encontro. A prova é o “Relatório do Corregedor José Anastácio Lopes Cardoso” inserido no artigo “O Caçador de Pedreiros-Livres: José Anastácio Lopes Cardoso e sua ação contra a Maçonaria luso-brasílica (1799-1804)”, escrito por Pablo A. Iglesias Magalhães (2016), publicado em 2017, na Revista de História 176 (São Paulo, USP, 2017).

O artigo “O Caçador de Pedreiros-Livres” analisa ponto a ponto o “Relatório”; destaca, no pensamento de Lopes Cardoso a influência das ideias conspiratórias do jesuíta Augustin Barruel[1] nas proposições e nas ações policiais executadas pelo corregedor de polícia contra as associações maçônicas e os pedreiros-livres de Portugal e do Brasil; ressalta o seu entendimento sobre os nomes relacionados nos papeis apreendidos com José Joaquim Vieira Couto; argumenta sobre a “opulência das lojas maçônicas na Bahia e Pernambuco”; e apresenta considerações historicamente oportunas sobre o “Relatório” datado de 14 de Abril de 1803, chancelado pelo Secretário da Policia Manoel Justino da Cunha em 16 de Abril de 1803, e endereçado ao Intendente da Polícia em Lisboa e seu chefe imediato Diogo Inácio de Pina Manique.

Uma cópia do “Relatório”, como indica o Professor Pablo, se encontra conservado no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), lata 21, e integra um conjunto de papéis do dossiê sobre Hipólito José da Costa.

À meu entendimento, “O Relatório” revela informações preciosas sobre os primórdios da Maçonaria em Portugal e sobre os maçons Hipólito José da Costa, preso em 1802 por Cardoso (o aprendi em Julho de 1802), José Joaquim Vieira Couto e José Borges de Barros; o que nos permite, como permitiu ao Professor Pablo, fazer associações ao padre Antonio Gomes de Carvalho, Tiradentes, Joaquim Silvério dos Reis Leiria, “muito abonado em cabedais e estimado no paço reprovado na maçonaria por unanimidade dos votos”; ao Areópago de Itambé e aos Irmãos Arruda Câmara. Esses ponto que nos parecem extrammente relevantes; pontos controvertidos até agora não agasalhados pela historiografia maçônica nacional ante a falta de documento probante.

Análises e Considerações

Preliminarmente, concordo com o Professor Pablo A. Iglesias Magalhães, quando chama atenção para o “Relatório”, asseverendo que ele permite vislumbrar a sociabilidade e circulação política dos pedreiros-livres brasílicos, nos seus primeiros tempos. E compartilho do entendimento de que na visão “barruelista” de Cardoso, os episódios relativos aos maçons brasílicos se articulavam num único projeto conspiratório para sublevar o Brasil, e que ele (Lopes Cardoso) articula no Relatório três episódios aparentemente distintos na história do Brasil: a Inconfidência Mineira (1789), a Conjuração Baiana (1798) e o protagonismo de Hipólito no desenvolvimento da maçonaria luso-brasílica, que teve como consequência sua prisão (1802).

Nas palavras do Professor Pablo, Cardoso notou como Hipólito da Costa se aproximou do grupo de intelectuais provenientes de Minas Gerais. E exclama! Ora, a historiografia parece esquecer que Hipólito trabalhava junto a frei José Mariano da Conceição Veloso, no século José Veloso Xavier, primo carnal de Joaquim José da Silva Xavier, o mártir Tiradentes, da Inconfidência Mineira (1789). As irmãs Antonia da Encarnação Xavier e Rita de Jesus Xavier foram, respectivamente, as mães de Joaquim José da Silva Xavier e de José Mariano da Conceição Veloso. Frei Veloso. Eis aqui um “elo solto” que pode untar a História da Maçonaria e da Inconfidência Mineira.

Merece especial atenção os relatos sobre José Joaquim Viera Couto, declaradamente maçom e envolvido no movimento mineiro. Preso no dia 26 de março de 1803, às 9 horas da manhã, em sua casa, por Cardoso e seus agentes, estes, encontraram aventais de pelica e martelos, objetos ligados a cerimônias maçônicas. Conduzido ao Santo Ofício, ficou quatro meses “em segredo”, sendo interrogado a partir de 9 de julho, afirmou que sua iniciação na maçonaria ocorreu no Sítio da Luz, a uma légua de Lisboa, por intervenção de Maurício Ponça, piemontês, que conheceu na Livraria Pública (…) afirmou ter hospedando o tenente-coronel de Minas Gerais José Joaquim Vieira Cardoso, o padre Antonio Gomes de Carvalho, José Saturnino e Luís José Maldonado. Couto negou que todos fossem maçons, mas, atualmente, isso pode ser confirmado. Declarou que em Lisboa, também reconheceu o coronel Joaquim Silvério dos Reis Leiria “muito abonado em cabedais e estimado no paço reprovado na maçonaria por unanimidade dos votos[2]”. infelizmente, Couto não revela porque a maçonaria recusou o ingresso de Silvério dos Reis.

No relatório há um parágrafo deve merecer nossa especial atenção: “Entretanto Repare V.a S.a que se notão em hum fragmento de papel os nomes de quatro R.R. que o forão na Revolução de Minas Geraes, e hoje degradados em Angola, e Monssanbique (sic); e que se empenhão muito os Maçoens em espalhar a seyta no Brazil. (Sabese haver loges opolentas em Pernambuco, e Bahia) Para isto vem muito o interesse que se deprehende nos papeis aprehendidos de clamar a seyta o novo Ouvidor de Cerro Frio que parece a não haver fim sinistro de nada serviria á seyta em Lisboa no tempo e que estiver servindo izolado no Certão do Brazil”.

O papel com os nomes dos quatro réus da Inconfidência Mineira foi apreendido por Cardoso, na casa de Vieira Couto, e estava sob a posse de Hipólito. Isso levou o corregedor a considerar as suspeitas de uma cabala maçônica que se espalhava e organizava pelo Brasil.

Acompanhado (e compartilhando) o entendimento do emérito Professor Pablo, para quem cabe duas considerações sobre essa citação. Em suas palavras: Primeiro, Cardoso sinaliza que Hipólito estava com uma lista com os nomes de quatro inconfidentes, mas sem revelar suas identidades. Considere-se que existe a suspeita de que a Inconfidência Mineira teve participação de pedreiros-livres, embora não tenha sido possível, até o presente, confirmar tal suspeita com documentos. Quem poderiam ser, contudo, os quatro inconfidentes desterrados, cujos nomes se encontravam com Hipólito na casa de Vieira Couto? Deve-se considerar, por eliminação dos que já estavam mortos, os possíveis nomes dos que ainda viviam: no desterro africano: o militar Francisco de Paula Freire de Andrada; Tomas Antônio Gonzaga; o sargento-mor Luiz Vaz de Toledo e Piza e o engenheiro José Álvares Maciel.

Em sua análise, o professor aponta que o primeiro, Francisco de Paula Freire de Andrade, era tenente coronel do regimento de dragões de Minas Gerais em 1789, filho do 2° conde de Bobadela, José Antonio Freire de Andrade, sendo, portanto, sobrinho de Antonio Gomes Freire de Andrade, 1° conde de Bobadela, governador e capitão-general do Rio de Janeiro (1733-1763). Era proprietário de uma biblioteca com livros de diversos autores da Ilustração e, apesar de seu posto militar, participou da conspiração republicana, franqueando sua casa para se reunirem os conjurados. Aliás, (como ressalta), a história, também aqui, esqueceu um detalhe: o inconfidente era primo em segundo grau de Gomes Freire de Andrade e Castro, já na época um dos mais influentes pedreiros-livres em Portugal.

O sargento-mor Luiz Vaz de Toledo e Piza, foi degredado para a prisão de Cambambe. Ele acusou Joaquim Silvério dos Reis de havê-lo aliciado para a conspiração; em outro interrogatório mudou seu depoimento e acusou o irmão Carlos Correia de Toledo. E em Moçambique, estava vivo o poeta e magistrado Tomás Antônio Gonzaga. Sua relação com a maçonaria, bem como de todos os inconfidentes, é incerta, mas bastante plausível. O engenheiro e Inconfidente José Álvares Maciel, declaradamente maçom, em 1800, encomendou uma memória sobre as minas de ferro de Angola.

A segunda consideração que deve ser observada no relatório de Cardoso, ao tratar de Minas Gerais, diz respeito a “clamar a seyta o novo Ouvidor de Cerro Frio que parece a não haver fim sinistro de nada serviria á seyta em Lisboa no tempo e que estiver servindo izolado no Certão do Brazil”.

Para o professor Pablo, a passagem do manuscrito é obscura, mas os indícios apontam que Cardoso errou ao se referir ao cargo de ouvidor. É bem possível que o cargo fosse outro: a Intendência de Serro Frio, então ocupada por Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt Aguiar e Sá. Em 1790, ele e seu colega santista José Bonifácio de Andrada foram enviados por Luis Pinto de Souza Coutinho, declarado maçom segundo uma carta da Marquesa de Alorna[3], para cursar física e mineralogia em Paris, capital das agitações políticas. Já na época, era notório que o irmão de Câmara, José de Sá Bittencourt e Acioli, fora implicado na Inconfidência Mireira, fugindo para a Bahia, ao abrigo dos seus parentes.

Numa carta ao Conde de Linhares, José Bonifácio afirma que “para a Química acha-se no Brasil José de Sá Bethencourt, irmão do Câmara, muito capaz; foi meu condiscípulo em Coimbra e então mostrou muito mais talento que o irmão”. Não resta dúvida de que o relatório de Lopes Cardoso se referia a Câmara Bittencourt[4] e não aos ouvidores.

Esses personagens, aparentemente dispersos nas histórias da política e das ciências no Brasil, convergem em uma afirmação revelada num relatório da polícia lisboeta de 15 de agosto de 1802. O documento afirma que “se os franco-maçons devem ser tolerados porque alguns […] da Loja dos Cavaleiros da Espada no Oriente estão encarregados do descobrimento de minas de carvão, de cobre, ferro, salitre, o príncipe decidirá[5]”. Essa era a associação maçônica supostamente chefiada por Hipólito. O inconfidente desterrado José Álvares Maciel, em 1800, encomendou uma memória sobre as minas de ferro de Angola. A sociedade entre Câmara Bittencourt e Agostinho Gomes, em 1801, era justamente para exploração de cobre na Bahia.

Outro ponto importante analisado pelo Professor Pablo, diz respeito a anotação feita por Cardoso de que havia opulentas lojas maçônicas na Bahia e em Pernambuco, e que merece ser considerada com seriedade pela historiografia. E acrescenta: deve-se sublinhar que já existia em Salvador a Loja Virtude e Razão, estabelecida a 5 de julho de 1802 (no calendário maçônico 15/04/5802 A:. V:. L:.), no Rito Moderno. Foram possivelmente seus associados que auxiliaram a fuga do contrabandista inglês Thomas Lindley, também maçom, conforme ele mesmo declarou no seu livro publicado em 1805.

E, complementa: Pernambuco também possuía lojas maçônicas, entre elas, o Areópago de Itambé, suspostamente estabelecido em 1796 por alguns intelectuais brasílicos. Um dos seus fundadores teria sido Manuel Arruda Câmara (1752/1810), que era correspondente da Sociedade Literária do Rio de Janeiro (1794), havendo cursado Filosofia Natural pela Universidade de Coimbra e Medicina pela Universidade de Montpellier. Arruda Câmara é tido por “maçom que se correspondia com grandes chefes da maçonaria em Portugal e a quem se deve uma inteligente propaganda revolucionária[6]”.

Conclusão

Por fim, em suas conclusões, o Professor Pablo é objetivo ao afirmar: Conforme pode ser observado nas considerações acima, o relatório de Lopes Cardoso pode ser bem mais do que devaneios de um barruelista convicto. Suas observações possuem fundamentos documentais ou indícios que devem ser considerados a respeito de um projeto, ainda que difuso e obscuro, para sublevar as principais capitanias do Brasil.

A nossa conclusão, em nada difere, pois, mesmo tendo conciência de que o artigo “O Caçador de Pedreiros-Livres: José Anastácio Lopes Cardoso e sua ação contra a Maçonaria luso-brasílica (1799-1804)” já esteja circulando em Portugal e no Brasil há algum tempo, quedo-me profundamente agradecido à oportunidade trazer este texto aos Irmãos e aos Escritores Maçônicos no DF, crente da contribuição que se presta à historiografia maçônica. Estamos cientes que a partir deste momento, outros horizontes se abrirão em forma de artigos e livros, contribuído para o enlevo dos maçons e da cultura maçônica.

Recomendando o acesso e leitura ao texto original do Professor Pablo Antônio Iglesias Magalhães (disponivel em https://www.revistas.usp.br/revhistoria/issue/view/6861), me disperso, deixando por registrado a convicção de que ele (Pablo), muito possivelmente, seja um dos nossos (bom Irmão).

Queira-me bem.

LGR.

[1] Augustin de Barruel (1741/1820), padre jesuíta, jornalista e polemista católico conservador, considerado o pai da Antimaçonaria.

[2] (Nota 61) ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de José Joaquim Vieira Couto nº 16.809. f. 125v-126.

[3] (Nota 71) IHGB. Lata 21, doc. 2, fl. 2. A própria marquesa de Alorna e a sua Sociedade da Rosa, ordem paramaçônica andrôgena, seria interceptada por José Anastácio Lopes Cardoso em 1803.

[4] Sá Bittencourt teve participação importante na Inconfidência. Se tudo desse certo, Bittencourt propunha-se a montar a casa de fundição da moeda (Márcio Jardim, A Inconfidência Mineira, pág. 240).

[5] (Nota 75) IHGB. Lata 21, doc. 2, fl. 30.

[6] (Nota 79) Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, vol. 103, 1954, p. III.

Argumentos para buscas: #Inconfidência Mineira. #Maçonaria. #Literatura Maçônica. #Estudos Maçônicos. #Aleijadinho. / Postagem: Asceta.33 – jul 7, 2021 – LGR.

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